sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

Passagens

I-

Se fosse capaz, não escreveria.
A luta contra o papel é desleal,
De uma angústia prazerosa.

Sobrevivo sonâmbulo,
Escravo do porvir.
Os advérbios sangram pela ferida da razão,
Os substantivos fogem às frias luzes da cidade.
Resta-me adjetivar meus sentimentos,
Torná-los intimamente públicos.

Secreção neural!

Palavras,
Donzelas, se não conquistadas,
São metastaseadas ao Mundo Inteligível.

Há quem não as usa,
Sequer as sente,
Quem as violente.
Talvez por isso se façam desdenhosas,
Pois quem é esbofeteado não esquece.

Volto a dormir...
A página mais branca que a minha pele,
Mais preta que meus pensamentos!


II-

Escrevo com uma caneta sem tinta.

A transposição é quase cirúrgica:
Das idéias ao papel,
O caminho é pseudomental,
Sublingual,
Entremeado por infindas vicissitudes.

Escrevo com uma caneta sem tinta.

Como o marceneiro sem martelo
E o filósofo sem presunção,
Não sou!

Camufladas sob os meus preconceitos,
Abrigadas da versofágica Racionalidade,
Palavras, palavras...

Escrevo com uma caneta sem tinta.
Por favor, dê-me um lápis!


III-

Se o que sinto não pode ser escrito,
Por que insisto?

Instinto?
Vício!

Com a espada sobre o pescoço,
Incansavelmente escrevo,
Inalcançavelmente escrevo!

De costas para a gramática,
Para a sintaxe, os morfemas e a ortografia,
Escrevo sem métrica, estrutura ou rima.

O que importa
Se o pronome é oblíquo ou reto,
Se os versos são heróicos ou sáficos,
Quando se escreve asfixiado pela vida?

Escrevo...
Porque sou analfabeto,
Porque sou tu, nós, eles.
Porque sinto medo!

Escrevo...
Com sangue diluído às lagrimas;
Com as chagas da utopia;
Com o coração que ainda pulsa fora do peito!

Dionisiacamente


Acrílica e giz pastel sobre tela

Garotas da noite 2


Óleo sobre tela

Garotas da noite 1


Óleo sobre tela

Eles


acrílica sobre tela

Submerso no cotidiano

Que dia vence o boleto da moto? Passos largos. O aniversário da tia Marta é no sábado. Ou será no domingo? Ela nasceu no dia de Santo... Acho que vence hoje. Multa, cacete! Pago amanhã e já aproveito para comprar uma lembrancinha para ela; chegar de mãos abanando não é lá muito chique. Passos largos. Falta de chiqueza é ela não ver o sobrinho há tanto tempo! Passos largos. Alô, sim sou eu. Não, não quero outra assinatura de jornal, minha senhora. Vence só no final do ano. Aliás, quero cancelar. Agora tudo que é noticia eu vejo pelo computador. É, c-a-n-c-e-l-a-r! Não, não sei o número do meu CPF de cabeça. Alô!Alô! Passos largos.
- Boa tarde, seu Tobias.- Tarde, menino. Será que chove essa noite?Devo ter cara de meteolo... Metero... De homem do tempo para esse velho! Amanhã preciso acabar aquele projeto de qualquer jeito; o Almeida já está no meu pé. Se perco esse emprego! Passos largos. Que merda de time, esse meu! Perder em casa, ainda com gol contra. Agora ficou quase impossível alcançar o líder. Passos largos.
- Boa tarde, moça. Quanto é o... Deixa eu ver aqui... Easy Plus Test?- Vinte e dois e cinqüenta.
- À vista?- Consigo chegar a vinte e um.- Fazer o quê! E como funciona?
- Pede para ela mergulhar a fitinha no primeiro xixi do dia. - Que cor não pode ficar, se é que você me entende?!
- Torce para não avermelhar. - Vê também um Lexotan e... Qual desses dois é melhor?
- Este é o que o ator da novela das oito usa, sabe aquele bonitão? E que rosto lisinho ele tem, hein!
- Xiii... Vou levar o de lá.
- Não quer aproveitar para levar duas escovas com limpador lingual pelo preço de uma?- Obrigado.
- Seu troco. Tenha uma ótima tarde.A cara dela não dizia o mesmo que a boca. Preciso fazer a barba! Passos largos. Para que serve a barba? Para proteger a cara? Para esconder a cara? Serve para ser feita, para quê mais? Doze e oitenta mais quatro e sessenta. O dinheiro vai dar. Sem essa camisa não tem como ir ao casamento do Bento. Passos largos. Se bem que não seria nada mal se eu não pudesse ir. Aquela ladainha de sempre...
- Desculpa meu jovem, já encerramos o expediente.
- O dinheiro já está trocado, senhor. Até escolhi a camisa passando por aqui ontem. É aquela ali da ponta, de manga longa.
- Não tem jeito.A Rose me mata. E eu iria para o céu? Passos largos. Acho que não. Não estou no mesmo patamar dos Santos ou do Papa. Mas não posso ir para o mesmo lugar que um assassino ou político. De certo foi para evitar esse tipo de dor de cabeça que Deus inventou o purgatório. Passos largos. Puta merda! Não mandei o e-mail de confirmação. Chegando em casa tenho que ligar para Sônia, sem falta. Passos largos.
- Tem uma caneta, senhora?
Anotar! Se eu não esquecer de fazer isso já é um avanço. Ainda hoje: enviar
e-mail, passar no Marcelo para pegar emprestada a camisa amarela. Amanhã: comprar frutas, leite e....
- Alô! Oi amor. Em quinze minutos chego aí. Comprei sim. Como assim demorando? Um monte de coisa para fazer, Rose. Tchau! O que era para comprar, mesmo? Leite e... Deixa para lá. Passos largos.
- Desculpa! Não vi o senhor agachado aí!
Ele sorriu para mim. O catador de papelão sorriu olhando nos meus olhos. Passos curtos...

terça-feira, 13 de outubro de 2009

Rosto real


A viagem

Essas quatro horas e meia vão custar mais a passar do que jogo de tênis da segunda divisão, pensei ao dar partida no carro. E o pior nem era isso. O pior era chegar. Confraternização de família é tudo igual. O padeiro da esquina é mais íntimo do que metade dos que estão na festa. É tia trocando nome de sobrinho. É prima que engravida antes do tempo. É a rodinha de cá falando mal da de lá e a de lá fofocando sobre a de cá. O inferno “terrestrizado”.
Mas eu dirigia com cara de satisfeito. Afinal, era a primeira vez que saíamos “em família”. Ao meu lado, Marcela corrigia as provas de seus alunos do período da manhã. Buraco na pista e zero virava nove. Um calor dos infernos, mas ela teimava em manter o vidro fechado. “Senão estraga o penteado, amor”. O pai dela, Seu Agemiro, farda impecável como sempre, apontava as coordenadas com um olho na pista, outro no mapa de ponta cabeça. “Em frente, meu rapaz” repetia de minuto em minuto, como se brotasse uma bifurcação a cada quilômetro. Atrás de mim e ao lado do comandante a sogrona, dona Geni. Sogrona sem eufemismo. A velha devia pesar para lá de cem.
“Volta, volta. Isso. Deixa nessa estação, Rodrigo.”
“Quando te vê...”“ E os meus olhos ficam sorrindo...”
“ E pelas ruas vão te sentindo.”
“Seguindo, papai. E pelas ruas vão te seguindo.”
“Cuida da sua vida, Marcela.”
O que fiz para merecer isso? O ponteiro maior do relógio não tinha sequer completado a primeira volta!
Aturdido, não percebi a fila de carros no pedágio. Tive que frear bruscamente. Algo tocou o meu calcanhar. Ao olhar para baixo, subiu um gelo pela espinha. Maldito Lúcio. Eu não queria ter saído ontem, mas ele insistiu. “Deixa de frescura, Rodrigo. A gente fica só um pouquinho. A Marcela nem vai desconfiar. Amanhã você só viaja à tarde!” A sandália vermelha atrás do meu pé era a prova cabal. Estava encrencado, enrolado, enrascado e todos os “ados” e “idos” aplicáveis. E se ainda tivesse aprontado! Mas não. Vou pagar por um crime que não cometi. Dizia mamãe sabiamente: “Papagaio come milho e periquito leva a fama”. Eu tentei tirar o corpo na hora de ir embora da boate, mas o Lúcio insistiu. De novo. “É só uma caroninha. Nada mais do que seis quarteirões, meu irmão! Vai deixar a moça a pé a essa hora da madrugada? Deixei os dois na casa dela. Ela. Uma pessoa que nem o nome eu sabia ia me ferrar bonito!
Voltei a mim com a Marcela me estendendo um lenço de papel.
“ Nossa, amor! Que suadeira é essa?
“Fico nervoso sempre que pego estrada. Não esquenta.”
Difícil não esquentar. Meu rosto fervia. A imensa subida se aproximava e eu em quinta marcha. Nem por decreto eu tiraria o pé de cima daquela sandália.
“O carro precisa de mais força, meu rapaz”“
Está acelerado, seu Agemiro. Dá para subir. Gasolina ultimamente está custando os olhos da cara”
Antes passar por mão de vaca do que por galinha.O meu arsenal de caras complacentes estava se esgotando quando, por milagre, um acidente na pista. Trânsito lento. Era a minha chance. Atenção dos velhotes e da Marcela voltada para o fato. Abri a porta e soltei discretamente a sandália pelo vão.
Aumentei o rádio. Comecei a cantar.
“Animadinho, hein”
“É o jeito, minha linda.”
Foram dez minutos de alívio. Só podia ser provação! Bati o olho no retrovisor e um dos faróis do carro de trás piscou. E de novo. E de novo. De tão velho, o outro não devia funcionar. E não é que a passageira está sacudindo feito louca a maldita sandália vermelha! Emendei uma terceira ,uma quarta, depois a quinta.
“Que pressa é essa, meu rapaz?”
Nem me dei ao trabalho de responder. Meia hora de percurso em quinze minutos de relógio e lá estávamos em frente ao salão. Nem sinal do tal carro.
Estacionei. Todos saíram, exceto dona Geni.
“Vamos mamãe”
“Peralá, Marcela, resmungou cabisbaixa a velha. Tirei minha sandália no meio da viagem e não estou encontrando!"

segunda-feira, 7 de setembro de 2009

sem título


























































Ser difuso

Embriagado de um silêncio áspero,
O antes já não cabe em seu tempo.
A ausência, roxa e fria,
De um EU senhor de si,
Rasga o peito, esmaga o hoje.

Oh, Natureza meticulosa!
Madrasta!
Despida, traz o véu entre os seios,
Astuta, tortura-me no belo,
Na simples complexidade dos filhos.

Estou aqui! Estava? Estanque.
Da boca que jorrava versos cálidos,
Que vacilava entre o sim e o talvez,
Hoje sobra repulsa, expulsa o sabor.
Aos braços, que carregavam o futuro,
Cabe juntar o entulho, o esqueleto da verdade.

Encontro-me nos outros,
Semelhantes tão diferentes
Quanto o que deve ser feito
E o feito de fato.

Ao espelho,
O resto de mim.


Descoberto.

Estado















































































domingo, 5 de abril de 2009

segunda-feira, 2 de março de 2009

Nós


O reencontro

A diferença era brutal. As paredes enegrecidas emprestavam ao boteco um “quê” medieval. Do piso de madeira ao teto, a trepadeira, soberana, alastrava suas folhas secas. No balcão, Augusto lia o jornal, provavelmente da semana passada, com o charuto pendido no canto da boca. Quatro mesas, com quatro cadeiras cada uma completavam o cenário.
O cardápio sobre a mesa empoeirada era desnecessário, sabia muito bem o que você pediria se estivesse aqui comigo.
- Augusto, marguerita, por favor!
Da bolsa, tirei o papel tingido pelo tempo. Uma lágrima escorreu e, furiosa, espatifou-se sobre a carta que você escrevera após a nossa primeira discussão.
Despejei o pó esbranquiçado na bebida. A luz rala penetrava pela única janela e, refletida nas pedras de gelo do copo, deixava o ambiente ainda mais soturno.

Doze meses. Trezentos e sessenta e cinco dias. Oito mil setecentas e sessenta horas sem você. Um ano carregando aquela maldita imagem. Ai Sofia! Sua feição não entregava o sofrimento dos meses anteriores. Talvez porque você não quisesse que eu soubesse mesmo eu já sabendo e, quando chegou a hora, fez força para esconder atrás de um sorriso a terrível dor que te causava a desgraçada doença.
Duas da manhã em ponto. Exatamente a hora que, ao lado de você não presente, estava eu, somente eu. Imóvel, junto àquele caixote marrom que emoldurava o que sobrou de você. Tinha certeza que, daquele minuto em diante, estaria à deriva no mar revolto.
Ai, companheira! Dez anos que mais pareceram cem! Sofia, Sofia. A lembrança dos teus beijos ainda estremece meus alicerces, descompassa meu coração.

Com uma colher, remexi o preguiçoso pó no fundo do copo.

A primeira noite! Meus lábios já estavam anestesiados antes mesmo de você encostar os seus. As pernas, num ato de rebeldia, não obedeciam ao cérebro. Sentia, ao mesmo tempo, a coluna gelada e o peito fervendo. Homem algum conseguiria aquilo.
Mas não demora nosso reencontro, amor. Sem ninguém a espiar de canto de olho; a cochichar enquanto nos beijamos. Está chegando o dia de sentir novamente em suas têmporas, o coração pulsando as sílabas do meu nome. Não, não somos almas gêmeas. Gêmeos não se amam tão intensamente. Somos a mesma alma.
Por que te chamam assim, Criador? Que Deus és tu?
O quarto estava escuro, porém romântico. Ela, com a camisola florida, veio ao meu encontro trazendo duas taças de champanhe e um par de olhos, meio ingênuos, meio maliciosos. Beijou meu pescoço nervoso e, descendo até metade das costas, arrancou-me um suspiro que jamais imaginei caber em mim. Acabava de descobrir o amor.
Às vezes, acho que foi bom. Ou no mínimo, didático. O que era desconfiança, agora é certeza: essa verdade absoluta que nos empurram goela abaixo desde criança não é tão verdadeira assim. Divindade e razão não poderiam coexistir. Divindade é o estado de espírito que algumas pessoas atingem, sem relação com deuses ou crenças. Atingem, justamente por não estarem presas a uma razão infundada.
Essa razão, presente na grande maioria dos homens, não permite que vejam que são menos racionais do que sua limitada racionalidade pode conceber. Homens e mulheres que vivem, mediocremente, até caírem no abismo da morte. Como você era diferente deles, Sofia. Trazia consigo divindade e razão, impossíveis aos outros mortais. Agora, estou mais vazia do que o propósito de vida dessas insignificantes criaturas.

Augusto pigarreou. Foi o suficiente para que eu voltasse.
A pouca luz agora ofuscava minha visão. Uma golada, cinco minutos, estaria novamente em seus braços.
Vencida a última página do jornal, Augusto fitou-me por alguns segundos longos. Abaixou-se. Estrondo. Ajoelhou-se ao meu lado. A fumaça ainda saia pelo cano preto e lustroso. Com a mão desocupada sobre o meu peito ensangüentado e lágrimas nos olhos, ele revela:
- Sempre amei Sofia.

O homem nos tempos


ironia


conflito


Ausência confirmada

A imagem, ao mesmo tempo estranha e familiar, causou-lhe certa satisfação. Eram vários homens ao espelho. Na verdade, todos que o formaram nestes trinta e três anos. Observou cada detalhe, cada vestígio emprestado. As enormes olheiras contrastavam com a simetria helênica do rosto. Sorriu ao apalpar a mancha maior, que sustentava o olho esquerdo. Uma atípica sensação brotou-lhe no estômago, cresceu pelos pulmões e explodiu garganta afora:
- É agora!
Gargalhou e repetiu eufórico:
- Agora! Agora!
Ah, como eram belas aquelas manchas roxas! Mais que as horas de ensaio, revisões dos diálogos e figurino simbolizavam toda uma trajetória prestes a culminar no seu espetáculo, sua própria peça teatral.
- O casaco, sussurrou o assistente esticando o braço pela porta entreaberta.
- Deixa ai na cadeira.
Como um raio o pensamento das últimas semanas voltou e substituiu-lhe a feição tensa por uma afável: a platéia vidrada no palco; atores e espectadores em plena sintonia; o teatro não lotado, mas com as pessoas que deveriam ali estar.
Reservou, na primeira fila, o melhor lugar. Não que fosse cauteloso, mas a ocasião exigia tal preocupação. A idéia de que estava prestes a compartilhar sua maior realização o excitava mais do que a realização em si. Sempre estimou muito os amigos, o poder de escolha inerente à amizade o excitava, ao contrário do acaso que lhe parecia ser a família.
O que ele sentia por Eduardo era diferente. Mesma escola, mesmos heróis de infância, mesmos gestos. Sempre foram o mesmo. Cúmplices antes mesmo de entenderem o significado da palavra cumplicidade.
Eduardo sempre foi conselheiro. Das possibilidades fazia certeza. Entre eles, a diferença de dois anos, e, apesar disso, Eduardo era o alicerce que Fábio não tinha em casa.
- Um dia você vai ser um grande ator, Fabinho. Vou te aplaudir, em pé!
Fábio franziu a testa ao pensar no prometido aplauso. Assustou-se com a correspondência do movimento ao espelho. Os poros pareciam trabalhar em hora extra. As papilas salivares, entretanto, censuravam aos lábios o direito da separação.
O primeiro sinal ecoou camarim adentro. Puxando o casaco felpudo, despiu suavemente o encosto da cadeira e lembrou-se da primeira vez que se meteu a atuar. No primário, foi o protagonista de uma montagem de A Bela e a Fera. “Quantas primeiras vezes foram ao seu lado!” – murmurou, abençoando-se com o sinal da cruz de baixo para cima.
- Você não é ateu? – indagou sua companheira de cena que espiava pelo vão.
Bateu a porta. De um lado a outro intercalava passos largos e curtos. Os olhos buscavam um ponto para o repouso. Sentou-se, levantou-se, sentou-se. O movimento para enxugar o rosto ensopado foi bruscamente interrompido pela sensação de familiaridade com aquele pedaço de papel. Foi num lenço idêntico que ele e o amigo compuseram a primeira música, deviam ter uns nove anos. Metade da letra era palavrão; a outra metade escandalizou a maioria dos que a ouviram no alpendre da casa de um deles.
Reescreveu os trechos que lembrava, dobrou cuidadosamente o papel e guardou o agora amuleto no bolso do casaco.
Ao longe, numa outra atmosfera, tilintou o segundo sinal. Era o som envelhecido do sino da faculdade. Manhã chuvosa de quarta-feira, aula de Tecnologia da Construção, Fábio encontrou na mochila do amigo o bilhete que procurava. Com a voracidade de uma criança frente ao pote de sorvete, desdobrou o papel. Folha imensa para as poucas palavras. “... isso não tem nada a ver com você. E não se esqueça: quando os poucos que me consideram estiverem reunidos ao meu redor, é fundamental que esteja tocando Beethoven!”
O terceiro sinal bateu feito uma flecha nos tímpanos. O coração descompassado não condizia com os tamborins ritmados ao fundo.
Como uma noiva que tira o véu para o primeiro beijo, as cortinas se abriram.
A cadeira vazia refletiu a sua alma. As olheiras já não eram belas; o roxo, a cor da melancolia, da estola diaconal no momento da extrema unção. Os ombros curvados e os braços estendidos ao longo do tronco davam-lhe um aspecto primitivo.
Doou-se então com dedicação extra ao primeiro personagem, já que este iniciava o ato lamentando a perda do melhor amigo. Os violinos da Nona Sinfonia rasgaram-lhe o âmago do espírito.

urbano e natural


Meu marido é homem

Não sou feliz, mas tenho marido.
Adversativa. Socialmente adversativa!

Eis meu retrato:
Cabelos castanhos, rosto empalidecido,
Católica
Mulher do, não mulher!

Antes da queda do muro,
Da construção do teto,
O véu do amor era venda
As mãos da noite, quentes.

Agora,
O suicídio não choca,
Instiga!

Conformidade,
Reputação...
Pessoa. Primeira ou terceira?



O vácuo

Mulher sentada


Lições do português

Hoje pela manhã bateu aquela saudade dos tempos de colégio. Nostalgia gratuita que, vez por outra, alimenta uma ilusão semi-esquecida. Goma de mascar embaixo da cadeira, lápis no chão para contemplar a calcinha da professora, baladas no pátio embaladas ao som do Di Georgio e as aulas de português. Ah! Como eu gostava das aulas de português. Sempre admirei o que as palavras podiam mostrar, mas o fascínio maior era por aquilo que elas escondiam; que diziam sem dizer.
Apropriando-me da “parte pelo todo”, posso garantir que grandes lições foram e são ensinadas, mas não necessariamente aprendidas.
Um dos equívocos mais comuns cometidos mesmo por alunos aplicados no passado diz respeito aos verbos. Amar, por exemplo. Somente conjugado no presente do indicativo, afirmativo, na primeira pessoa do singular. E sempre questionado em terceira. Cisma de que haja de fato essa terceira pessoa? Bem provável.
A transferência de atributos que este verbo vem sofrendo é, no mínimo, curiosa. Eu amo virou eu possuo. Te amo é você me pertence. Pessoas se tornaram objetos: diretos quando usados explicitamente e indiretos quando uso é dissimulado. Tudo para que o tal verbo não seja conjugado no pretérito, ainda mais no perfeito, que de perfeito nada tem.
Já o verbo respeitar é um tanto quanto paradoxal. Apesar de estar na pauta de muitas discussões, é inconjugável na maioria das situações.
Em conflito, está o modo imperativo: não vai! Vou sim! Volta aqui! Volto nada! A conseqüência deste discurso é uma acentuada desobediência à concordância. A voz reflexiva até tenta consertar. Em vão. A ativa toma o lugar da passiva e vice-versa e o que resta é o silêncio cortante da incoerência.
O vocativo, antes esquecido e amparado pelas vírgulas, agora passeia soberano pela boca de quem ordena: Fulano, chega! Cicrano, pára!
As coordenadas não têm mais vez. Foram engolidas pelas subordinadas. Subordinação que não se restringe apenas às orações, ramificando-se para os pronomes possessivos, os adjetivos mal empregados e, principalmente, para o sujeito, antes simples, agora composto. E, muitas vezes, por um fenômeno lingüístico, composto e oculto ao mesmo tempo. E essa regência imposta, sequer o Professor Paschoali é capaz de compreender.
Nem mesmo a conotação poética de algumas frases tais como “você é tudo para mim” ou “você é uma rosa”, consegue remendar erros interpretativos da vida afetiva. As figuras de linguagem, exceto a hipérbole e a metáfora, parecem ter se rebelado contra a coesão, derivando-se assim tempos e os modos primitivos, vigentes nesse tipo de envolvimento.
Se seguissem às orientações do velho Aurélio, alguns preceitos já seriam concebidos de forma diferente. Segundo ele, relacionamento é a ligação afetiva condicionada por uma série de atitudes recíprocas.
Reciprocidade. Liberdade. Sufixos iguais, palavras complementares numa relação.
E como a língua portuguesa condena o didatismo exato, a verborragia aí de cima pode ser interpretada como convir ao leitor.

Sensações


Ninfa

Inocente alma tão crua;

Pecado a que estou sujeito;

Alva, linda, minha lua;

Grita desejo, arde o peito.




Atitudes minhas, suas;

Devaneios, não direitos;

Feita para que eu destrua,

Dobre tais costumes retos.

Descanso natural


Coala


Moça


Amigo inseparável

Setenta e cinco, com corpinho de noventa. Confesso que nunca conheci uma pessoa tão metódica quanto o Seu Pereira. É sagrado: às seis está em pé, um café forte, duas ou três páginas do jornal e lá está ele cochilando na cadeira de plástico do alpendre.
Na sala, ai de quem tirar um badulaque sequer do lugar. Conserva na estante, com muito orgulho, as fotos dos tempos da guerra, quando liderou a frente de batalha brasileira.
O velho é muito apegado ao seu companheiro Lençoval. Um lenço antigo, uma raridade. Presente do pai no leito de morte. Lindo, o Lençoval: marrom, com listras beges e roxas na diagonal.
Todo dia, antes de sentar-se para o almoço, tira o dito cujo do bolso e coloca sobre a mesa. Um espirro durante a refeição, lá está o amigo. Tosse não programada entra em cena novamente o fiel companheiro. Ao final, costumeiramente, o bigode do velho cede ao lenço o último grão de arroz que se prende aos poucos fios brancos.
Inesquecível uma tarde dessas, quando convidei Seu Pereira para um café em minha casa. Assim que chegou, sentou-se e eis que a tragédia veio à tona: o Lençoval escorregou da sua mão e caiu ao lado da minha cadeira. Era óbvio que, com todos aqueles anos nas costas, não seria capaz de resgatar o companheiro. Mas, até então, fingi que não tinha visto, torcendo para que...
- Meu filho, por favor, pega o lenço pra mim!
Não tive saída. Salvei o indefeso pedaço de pano das ferozes mordidas do Rex.
Mais tarde me contou sobre a despedida mais dolorosa da sua vida. Recém-casado, teve que embarcar para a guerra e deixar a esposa. O que o confortava era saber que teria a companhia do seu amigo durante o combate.
- Minha esposa, no cais, ficava cada vez menor, mais longe. Eu do navio, alternava o Lençoval entre sacudidas de adeus, lágrimas e assuadas de nariz. Nesse dia fiz a promessa de que, se voltasse a vê-la não lavaria nunca mais meu amigo de pano.
Nem ouvi o final da história. Corri para o banheiro e coloquei para fora todo o meu almoço.

paisagem fauvista


Carícia

Benditos dedos que partilham do mesmo
Sangue bombeado pela força incompreensível
A quem não sente.
Passeiam em euforia, desgovernados
Sem motivo para tamanha inquietação,
Pois conhecem as curvas que tateiam.
Tremor de menino pequeno,
Conseqüência do desejo acumulado.
E, quando em brasa, os lábios se encontram
Dá-se a explosão silenciosa.